"Estudos sobre a palavra de Deus” - Tiago 1

“ESTUDOS SOBRE A PALAVRA DE DEUS”

Tradução de Synopsis of the Books of the Bible – John nelson Darby

EPÍSTOLA DE S.TIAGO – CAPÍTULO 1

A Epístola de S. Tiago não se dirige à Assembléia e não se reveste da autoridade apostólica acerca daqueles a quem é enviada. É uma exortação prática que reconhece ainda as doze tribos e a relação dos Cristãos hebreus com elas, tal como Jonas se dirigia aos Gentios, embora o povo Judeu tivesse o seu lugar na presença de Deus. Assim o Espírito de Deus reconhece ainda aqui a relação de Deus com Israel (tal como no caso de Jonas; reconhece algumas relações como os Gentios), e os direitos de Deus que são inalteráveis, quaisquer que eles sejam, aliás, os privilégios especiais concedidos à Igreja ou a Israel, respectivamente. Historicamente, sabemos que os Cristãos hebraicos continuam Judeus até ao fim da história do Novo Testamento. Eles eram mesmo zelosos pela lei! Coisa estranha para nós, mas que Deus suportou por algum tempo.

A doutrina do Cristianismo não constitui o tema desta Epístola, mas dá a Deus o Seu lugar na consciência, e a respeito de tudo o que nos rodeia. Cinge assim os rins do Cristão, colocando também diante dele a próxima vinda do Senhor e a disciplina que Ele exerce atualmente - disciplina a respeito da qual a Igreja de Deus devia ter inteligência e atividade fundada sobre ela. Também o mundo, e tudo aquilo que neste mundo eleva e dá aparência de grandeza, é julgado do ponto de vista de Deus.

Algumas observações acerca da posição dos Cristãos, isto é, acerca da maneira como esta posição é considerada em relação a Israel, ajudar-nos-ão a compreender esta porção da Palavra de Deus.

Israel é ainda considerado como sendo o povo de Deus. A nação judaica tem, para a fé de Tiago, a relação que Deus lhe tinha dado com Ele próprio. Tiago dirige-se aos Cristãos considerando-os como fazendo ainda parte de um povo cujos laços com Deus não estavam até então judicialmente quebrados; mas, entre eles, eram somente os Cristãos que tinham a fé no verdadeiro Messias, que dava o Espírito. De entre o povo, somente eles e o apóstolo reconheciam Jesus como sendo o Senhor de glória. À parte os versículos 14 e 15 do capítulo 5, a Epístola não contém nenhuma exortação que, como edificamos espiritual, ultrapasse o que podia ser dito a um judeu piedoso. Supõe, é verdade, que as pessoas às quais se dirige têm fé no Senhor Jesus; mas não as chama ao que é exclusivamente próprio do Cristianismo e depende dos seus privilégios. As exortações decorrem de uma fonte mais elevada e respiram uma atmosfera mais celestial; mas o efeito que elas têm por alvo atingir consiste em provas reais da religião neste mundo. As exortações são de tal ordem que poderiam ser ouvidas na igreja professante, vasto corpo semelhante a Israel, no meio do qual existe alguns verdadeiros Cristãos.

Esta Epístola não se baseia nas relações cristãs neste mundo. Reconhece-as, mas apenas como um fato particular entre outros que têm direitos sobre a consciência do escritor. Supõe que aqueles a quem é dirigida estão em conhecida relação com Deus, que se não põe em dúvida, que vem de longa data, e no meio da qual o Cristianismo foi introduzido.

É importante notar a medida moral de vida que esta Epístola apresenta. A partir do momento em que apreendemos a posição em que ela considera os crentes, o discernimo da verdade sobre este ponto não é difícil. É a mesma medida moral de vida que Cristo apresentava, quando andava em Israel, colocando diante dos Seus discípulos a luz e as relações com Deus, que resultavam, para eles, da Sua presença. Sem dúvida, Ele estava agora ausente; mas esta luz e estas relações são mantidas como medida de responsabilidade - e é o que o regresso do Senhor fará valer em Julgamento, contra aqueles que se recusam a andar de harmonia com esta luz e com estas relações. Até esse dia, os fiéis devem ter paciência no meio da opressão que sofrem da parte dos Judeus, que blasfemam ainda o Santo Nome sobre eles invocado.

É o inverno da Epístola aos Hebreus, a respeito da relação dos crentes com o povo judeu; não moralmente, mas por causa da proximidade do Julgamento na época em que a Epístola aos Hebreus foi escrita.

Os princípios fundamentais da posição de que acabamos de falar são estes: A lei na sua espiritualidade e na sua perfeição, tal como Cristo a expôs e resumiu; uma vida comunicada, que tem os princípios morais da lei, uma vida divina; a revelação do Nome do Pai. Tudo isto era verdade, quando o Senhor estava sobre a Terra, e era o terreno sobre o qual Ele tinha colocado os Seus discípulos, por muito pobre que fosse o conhecimento que eles tinham desse fato. Tinha-lhes dito que, após a Sua morte, deviam ser testemunhas de tudo o que tinham visto e ouvido, distinguindo esse testemunho daquele que havia de dar o Espírito Santo. É isto o que Tiago ensina aqui, juntando-lhe ainda a promessa do Senhor a respeito do Seu regresso. É a doutrina de Cristo acerca do comportamento no meio de Israel, de harmonia com a luz e as verdades que Ele tinha introduzido; e, uma vez que Ele estava ainda ausente, uma exortação à perseverança e à paciência nesse procedimento, esperando o momento em que Ele faria valer, por meio do julgamento daqueles que oprimiam os fiéis, os princípios segundo os quais estes andavam.

Embora o Julgamento executado contra Jerusalém tenha mudado, sob este aspecto, a posição do Remanescente de Israel, a vida de Cristo fica sempre o nosso modelo, e nós temos de esperar com paciência que o Senhor venha.

A Epístola não se refere à associação do Cristão com Cristo assunto ao Céu, nem, por conseqüência, ao pensamento que nós iremos ao Seu encontro nos ares, como Paulo ensinou. Mas o que ela encerra é sempre verdade; e aquele que diz que habita n 'Ele (em Cristo), deve andar como Ele andou.

O Julgamento ia abater-se sobre o povo faz compreender a maneira como Tiago fala no mundo, dos ricos, que se regozijavam da sua porção do mundo, e da posição do Remanescente crente, oprimido e sofrendo no meio do povo incrédulo; compreendemos a razão porque ele começa pelas tribulações e delas fala tão freqüentemente, e também porque insiste nas provas práticas da fé. Ele vê ainda todo o Israel em conjunto; mas alguns havia que tinham recebido a fé no Senhor de glória, e eram tentados a sobreestimar os grandes e os ricos de Israel. No entanto, sendo todos ainda Judeus, compreende­-se facilmente que enquanto uns criam verdadeiramente e confessavam que Jesus era o Cristo, outros havia que, embora dizendo-se cristãos, seguiam as ordenanças judaicas; deste modo os simples professantes podiam fazer o mesmo, sem que houvesse neles a menor mudança vital, demostrada pelas suas obras. É evidente que uma tal fé não tem o mínimo valor. É precisamente a fé daqueles que hoje enaltecem o valor das obras - é uma profissão morta da verdade do Cristianismo. Para estes, ser gerado pela Palavra da Verdade é uma coisa tão desconhecida e estranha como o era para os judeus de que Tiago fala.

Os crentes eram assim colocados no meio de Israel, com alguns que não eram senão simples professantes. Compreende-se, pois, facilmente, a razão porque o apóstolo se dirige à massa do povo como sendo aqueles que podiam ter parte nos privilégios que existiam no meio deles; como se dirige aos Cristãos como havendo um lugar especial para eles, e como adverte ao mesmo tempo aqueles que professam crer em Cristo. A aplicação prática da Epístola em todos os tempos, e, em particular, naqueles em que um corpo numeroso pretende ter direito aos privilégios do povo de Deus, por herança, é das mais fáceis e de uma clareza perfeita. De resto, a Epístola tem uma força muito particular para toda a consciência individual: Julga a posição em que nos encontramos, os pensamentos e as intenções do coração.

A Epístola começa, pois, por uma exortação a regozijarem-se nas provações, porque estas são um meio de produzirem a paciência. Em suma, este assunto das provações prossegue até ao fim do verso 20 do capítulo 1, onde o pensamento se volta para a necessidade de pôr um freio a tudo aquilo que se opõe à paciência, e para o verdadeiro caráter de uma alma que se considera na presença de Deus. Esta exortação, como conjunto, vai até ao fim do capítulo. A ligação dos raciocínios do apóstolo nem sempre é fácil de reconhecer. Encontra-se a chave no estado moral de que ele se ocupa, e eu farei o possível para a tomar tão sensível quanto possível.

O assunto, de um modo geral, é este: Devemos andar na presença de Deus para mostrarmos a realidades da nossa profissão de fé, em contraste com a união com o mundo; é a religião prática. A paciência deve, pois, ter a sua obra perfeita. Deste modo a vontade própria é subjugada e a vontade de Deus é totalmente aceita; por conseqüência, nada falta à vida prática da alma. O crente pode sofrer, mas espera pacientemente no Senhor. É o que Cristo fez; era a Sua perfeição. Esperava sempre a vontade de Deus, nunca fazendo a Sua própria. Deste modo a Sua obediência era perfeita; era o homem perfeitamente posto à prova. De fato, carecemos muitas vezes de inteligência para sabermos o que devemos fazer. Aqui, diz o apóstolo, o recurso é claro: temos de pedir sabedoria a Deus. E Ele dá a todos liberadamente; e, quanto a nós, somente devemos contar com a Sua fidelidade e com uma resposta às nossas orações. De outro modo, o coração é enganador, a nossa dependência está noutro lado e não em Deus, e os nossos desejos têm outro objeto - e não Ele. Mas se procurarmos unicamente o que Deus quer e o que Deus faz, dependeremos d'Ele com um coração firme para cumprirmos a Sua vontade; e quanto às circunstâncias deste mundo, que poderiam fazer-nos crer que é inútil depender de Deus, "elas desaparecem como a flor dos campos". Devemos ter a consciência de que o nosso lugar, segundo Deus, não é deste mundo; aquele que é de baixa condição social deve regozijar-se pelo fato de o Cristianismo o dignificar, assim como o rico se deve regozijar pelo fato de o Cristianismo o tomar humilde. Não é nas riquezas que devemos regozijar-nos, pois breve se esgotam, mas sim nos exercícios de coração, de que o apóstolo fala, porque, após termos sido provados, receberemos a coroa de vida. A vida daquele que é provado e em quem esta vida se desenvolve na obediência a toda a vontade de Deus é mais digna do que a de um homem que prefere satisfazer os desejos do seu coração em luxúria...

Ora, quanto a essas tentações, nas quais as cobiças do coração fazem cair os homens, escusado seria dizer que elas não vêm de Deus. É o coração do homem que lhes dá origem, e elas, pelo pecado, conduzem à morte. Que ninguém se engane sobre este ponto: O que tenta o coração interiormente vem do próprio homem, do mais recôndito da sua alma. Os dons perfeitos e bons vêm todos de Deus - e Deus é imutável; Deus somente faz o que é bom. Por conseguinte, deu-nos uma nova natureza, fruto da sua própria vontade, operando em nós pela Palavra da Verdade, a fim de que sejamos uma espécie de primícias das Suas criaturas (v .18). O que for trevas não pode vir do Pai das luzes. Pela Palavra da Verdade, Ele nos gerou para sermos as primeiras e as mais excelentes testemunhas desse poder de bem que resplandecerá mais tarde na nova criação, de que nós somos as primícias. É a antítese da origem dos desejos corruptos.

A Palavra da Verdade é a boa semente da vida, assim como a vontade própria é o berço das nossas cobiças. A energia desta vontade não poderia produzir os frutos da natureza divina, nem a ira do homem realizar a justiça de Deus. Por conseguinte, nós somos chamados para sermos dóceis, prontos a escutar, lentos a falar, tardios para a ira, a rejeitar toda a mancha da carne, toda a energia da iniquidade, e a receber com doçura a Palavra - Palavra que, sendo inteiramente a Palavra de Deus, se identifica com a nova natureza que está em nós (é plantada em nós), formando-a e desenvolvendo-a segundo a Sua própria perfeição, porque esta mesma natureza tira a sua origem de Deus pela Palavra.

Esta Palavra da Verdade não é como uma lei que está fora de nós e que, estando em oposição com a nossa natureza pecadora, nos condena. Ela salva a alma; é viva e vivificante, e opera de uma maneira viva numa natureza que dela emana e que ela forma e ilumina.

Mas é necessário pôr em prática a Palavra; é preciso que não se ouça apenas de ouvido esta Palavra, mas que ela produza os frutos práticos que são a prova de que ela opera real e vitalmente no coração. De outro modo ela não é senão um espelho onde nos vemos talvez por um momento, para depois esquecermos o que vimos. Aquele que atenta na lei perfeita, que é a da liberdade, e que nela persevera, fazendo a obra que ela apresenta, será abençoado na atividade real e obediente que nele se desenvolve.

Esta lei é perfeita, porque a Palavra de Deus, tudo o que o Espírito de Deus exprimiu, é a expressão da natureza e do caráter de Deus, do que Ele é e do que Ele quer, porque, quando é plenamente revelado (e até então o homem não pode conhecê-Lo plenamente), Ele quer o que Ele é, e isto necessariamente.

Esta lei é a lei da liberdade, porque a mesma Palavra, que revela o que Deus é e o que Ele quer, nos tomou participantes, pela graça, da natureza divina; de sorte que não andar segundo esta Palavra seria não andar segundo a nossa própria nova natureza. Ora, andar segundo a nossa própria nova natureza - e é a natureza de Deus - é sermos guiados pela Sua Palavra, é a verdadeira liberdade.

A lei dada no Sinai, escrita, não no coração, mas fora do homem, exprimia o que o comportamento e o coração do homem deviam ser, segundo a vontade de Deus; reprime e condena todos os movimentos do homem natural, e não pode permitir-lhe ter vontade própria, porque ele, deve fazer só a vontade de Deus. Há, portanto uma outra vontade, e, por conseguinte, a lei é, para ele, uma servidão, uma lei de condenação e de morte. Mas Deus, tendo-nos gerado pela Palavra da Verdade, a natureza que nos deu, na qualidade de assim nascidos de Deus, tem gostos e desejos conformes a essa Palavra; é mesmo dessa Palavra. A Palavra, na sua própria perfeição, desenvolve esta natureza, forma-a, ilumina-a, como dissemos já; mas a própria natureza tem a sua liberdade, seguindo o que esta Palavra diz. Foi assim com Cristo. Se alguém tivesse podido privá-Lo da Sua liberdade - o que, espiritualmente, era impossível - isso seria sido impedi-Lo de fazer a vontade de Deus, Seu Pai.

Dá-se o mesmo com o novo homem (este novo homem é Cristo, como vida em nós), que é criado em nós, de harmonia com a vontade de Deus, em Justiça e em verdadeira santidade, produzidas em nós pela Palavra que é a perfeita revelação de Deus, do conjunto da natureza divina do homem - aquilo de que Cristo, a Palavra viva, a imagem do Deus invisível, é a manifestação e o modelo. A liberdade do novo homem é a liberdade de fazer a vontade de Deus, de imitar Deus no Seu caráter, como sendo Seu querido filho, segundo como esse caráter foi apresentado em Cristo. A lei da liberdade é esse caráter, tal como é revelado na Palavra; e a nova natureza encontra a sua alegria e a sua satisfação nesse caráter de Deus revelado em Cristo, como tira a sua existência da Palavra que O revela e do Deus que ali é revelado. Tal é "a lei da liberdade" (v.25), o caráter do próprio Deus em nós, formado pela operação de uma natureza gerada pela Palavra que O revela, e moldando-se sobre esta mesma Palavra.

O primeiro e o mais seguro indício que trai o homem interior é a língua. Um homem que aparenta estar em relação com Deus e honrá-Lo, mas não sabe refrear a língua, engana­-se a si mesmo e é vã a sua religião.

A religião pura e perante Deus o Pai consiste na solicitude por aqueles que, atingidos pela salário do pecado nos mais temos liames do coração, são privados dos seus amparos naturais; e em nos guardarmos da corrupção do mundo (v.27). Em lugar de fazermos esforços para nos elevarmos e para nos fazermos valer num mundo de vaidades, longe de Deus, as nossas atividades devem voltar-se - tal como Deus o faz - para os infelizes que, na sua aflição, têm necessidade de socorro; e guardar-nos a nós próprios de um mundo onde tudo mancha, onde tudo é contrário à nova natureza, que é a nossa vida, e ao caráter de Deus, tal como nós O conhecemos pela Palavra.

 

"Estudos sobre a palavra de Deus” - Tiago 2