“ESTUDOS SOBRE A PALAVRA DE DEUS”
Tradução de “Synopsis 0f the Books 0f the Bible - John Nelson Darby
EPÍSTOLA DE S. JUDAS
A Epístola de Judas desenvolve a história da apostasia da Cristandade, desde os primeiros elementos que se insinuaram na Igreja, para a corromperem, até ao seu julgamento, até ao aparecimento de nosso Senhor - apostasia moral que mudava a graça de Deus em dissolução. Em João, eles tinham saído; aqui, tinham-se introduzido, corrompendo. Esta epístola é muito pequena, contendo lições apresentadas muito brevemente e com a rapidez enérgica do estilo profético, mas tem uma imensa importância e um alcance considerável.
O mal que se infiltrou no seio dos Cristãos não cessará até que o Juízo o destrua.
Já o notamos; há uma diferença entre a Epístola de Judas e a Segunda Epístola de Pedro:
Pedro fala de pecado; Judas fala de apostasia, do abandono pela Assembléia do seu estado primitivo perante Deus. O abandono da santidade da fé é o assunto de que Judas trata. Não fala de separação exterior. Considera os Cristãos como um grupo de pessoas professando uma religião sobre a Terra, e sendo primitivamente fiéis ao que professavam. Certas pessoas tinham-se introduzido entre eles, sem eles o saberem. Comiam sem temor com os Cristãos em suas confraternizações (ágapes); e, embora o Senhor venha, acompanhado de todos os Seus santos (de modo que os verdadeiros fiéis já terão sido arrebatados), entretanto, no Juízo, essas pessoas são ainda consideradas como estando na mesma categoria - "para fazer Juízo ... e condenar, de entre eles, todos os ímpios" (v.15). Eles podem bem estar em rebelião aberta no momento do Julgamento, mas eram indivíduos que tinham feito parte do conjunto dos Cristãos; eram verdadeiramente apóstatas inimigos deixados para trás.
Quando nos é dito: "Estes são os que causam divisões", não é de uma separação aberta com a Igreja visível que se trata, porque o apóstolo fala deles como estando no meio dela; mas separam-se dentro dela, como se fossem mais excelentes do que os outros, tal como faziam os Fariseus entre os Judeus. Judas assinala esses homens como estando no seio dos Cristãos, e como tal se apresentando. O Juízo abate-se sobre esta categoria de pessoas, uma vez que o arrebatamento dos santos os deixa para trás, para o Juízo.
Ao começar, Judas assinala a fidelidade de Deus e o caráter dos Seus cuidados com os santos, com os que respondem ao pedido de Jesus na Sua oração, no capítulo 17 do Evangelho segundo S. João. Eles eram chamados, santificados por Deus o Pai e conservados em Jesus Cristo (v. 1). Feliz testemunho este, que exalta a graça de Deus! "Pai Santo", diz o nosso Senhor, "guarda-os"! Ora, estes eram santificados por Deus o Pai e guardados em Jesus Cristo. O apóstolo fala em vista do abandono da santa fé por vários, e dirige-se àqueles que eram guardados.
Tinha pensado escrever-lhes acerca da salvação comum a todos os crentes; mas achava necessário escrever-lhes para os exortar a manterem-se firmes, a combaterem pela fé que, uma vez, fora dada aos santos. Queria fazê-lo porque já havia quem corrompesse esta fé pela negação dos direitos de Cristo a ser Senhor e Mestre; e assim, afrouxando o freio à vontade própria, abusavam da graça e mudavam-na num princípio de dissolução. Eis os dois elementos desse mal que os instrumentos de Satanás introduziam: a rejeição da autoridade de Cristo (não o Seu nome), e o abuso da graça para satisfazerem as suas cobiças. Nos dois casos, era a vontade do homem que libertavam de tudo o que a refreava. A expressão "Senhor Deus" indica este caráter de Deus. "Senhor", aqui, não é a palavra geralmente empregada em Grego; é "Mestre".
Em seguida, tendo assinalado o mal que se tinha insinuado secretamente entre os Cristãos, a Epístola revela-lhes que o Juízo de Deus é executado contra aqueles que não andam segundo a posição em que Deus os tinha primeiramente colocado.
O mal não consistia somente em certos homens se terem introduzido sorrateiramente no meio dos Cristãos - o que era já, só por si, um grande mal, porque a ação do Espírito Santo era assim entrava entre os Cristãos, mas também que, e em definitivo, o conjunto do testemunho perante Deus, o vaso que continha esse testemunho se corromperia (como tinha acontecido com os Judeus) a um tal ponto que chamaria sobre si o Juízo de Deus. E ele tinha-se corrompido! ...
Encontramos, pois, aqui o grande princípio da queda do testemunho estabelecido por Deus no mundo, por meio da corrupção do vaso que o contém e que usa o Seu nome. Assinalando a corrupção moral como caracterizando o estado dos professantes, Judas cita, como exemplo dessa queda e do seu julgamento, o caso de Israel, que caiu no decerto (à exceção de dois homens, Josué e Calebe),e o dos anjos que, não tendo guardado o seu primitivo estado, são reservados, na escuridão e em prisões eternas, até ao Juízo daquele grande dia (v. 5-6).
Este último exemplo sugere um outro a Judas, a saber, o de Sodoma e Gomorra, apresentando a imoralidade e a corrupção como causa do Juízo. O estado dessas cidade é um testemunho perpétuo do seu julgamento neste mundo.
Esses homens ímpios, tendo nome de Cristãos, não passam de sonhadores, porque a verdade não está neles. Desenvolvem-se neles os dois princípios que assinalamos, a saber, a impureza da carne e o desespero da autoridade. O último manifesta-se sob uma segunda forma, a saber, a licenciosidade da língua, a vontade própria que se manifesta nas injúrias contra as dignidades. Ao passo que - diz o texto - o arcanjo Miguel não ousara injuriar o próprio Diabo, chamando-o apenas, na gravidade de alguém que atua segundo Deus, ao julgamento do próprio Deus (v. 8-9).
Em seguida, Judas resume os três gêneros ao caracteres do mal e do afastamento de Deus. Em primeiro lugar, assinala o da natureza, a oposição da carne ao testemunho de Deus e ao Seu verdadeiro povo, o livre curso que esta inimizade dá à vontade da carne. Em segundo lugar, fala do mal eclesiástico do ensino do erro por causa de uma recompensa, sabendo-se no entanto que este ensino é contrário à verdade e contra o povo de Deus. Em terceiro lugar, mostra a oposição aberta, a rebelião contra a autoridade de Deus, no Seu verdadeiro Rei e Sacerdote.
No tempo em que Judas escreveu a sua epístola, os que Satanás introduzia na Igreja para ali abafarem a vida espiritual e conduzirem ao resultado que o Espírito contempla profeticamente, permaneciam no meio dos santos e tomavam parte nos piedosos ágapes onde se assemelhavam em testemunho do seu amor fraternal. Esses homens eram manchas ou nódoas que caíam nessas santas refeições, pascendo sem temor nas pastagens dos fiéis. O Espírito Santo denuncia-os energicamente. Estavam duplamente mortos, por natureza e pela sua apostasia; sem fruto, ou trazendo fruto que se estragava, como se fora da estação própria; desarreigados, escumando por todo o lado as suas infâmias' estrelas errantes, reservadas para as trevas eternas. Havia longo tempo que o Espírito anunciara, pela boca de o que, o Julgamento que seria executado contra eles.
Esta passagem apresenta um lado muito importante do ensinamento que é dado aqui, a saber, que o mal que se tinha insinuado no meio dos Cristãos havia de continuar e seria encontrado ainda quando o Senhor voltasse para o Julgamento. O Senhor viria com miríades dos Seus santos para executar o Julgamento sobre todos os ímpios de entre eles, por causa dos seus atos de iniqüidade e das palavras ímpias que eles tinham pronunciado contra o Senhor (v.14-15). Haveria um sistema contínuo do mal, desde o tempo dos apóstolos, até que o Senhor voltasse. Este é um aviso solene do que há de acontecer entre os Cristãos.
É profundamente notável ver o escritor inspirado identificar os fomentadores de devassidões com os rebeldes que serão o objeto do Julgamento no último dia. É o mesmo espírito, a mesma obra do Inimigo, refreada de momento, que amadurecerá para o Juízo de Deus. Pobre Assembléia! ...
Todavia, isto não é senão a marcha universal do homem. Somente, tendo a graça revelado plenamente Deus libertado da lei, resulta daí agora, ou a santidade do coração e da alma e as delícias da obediência sob a perfeita lei da liberdade, ou a devassidão e a rebelião abertas. Nisto, o provérbio é verdadeiro: a corrupção do que é mais excelente é a pior das corrupções. É preciso acrescentar aqui que a admiração dos homens, para conseguir deles algum proveito pessoal, é um outro traço característico desses apóstatas. Não é, pois, a Deus que eles pertencem.
Ora, os apóstolos tinham já advertido os santos de que esses escarnecedores viriam, andando segundo as suas ímpias concupiscências, exaltando-se, não tendo o Espírito, encontrando-se apenas no seu estado natural (v.17-19).
Vem em seguida a exortação prática para aqueles que eram guardados. Segundo a energia da vida espiritual e pelo poder do Espírito de Deus, deviam, por graça, edificar-se e guardar-se na comunhão de Deus (v. 20-21). A fé, para o crente, é uma fé muito santa; e ele ama-a, porque ela é assim. A fé põe-no em relação e em comunhão com o próprio Deus. O que há a fazer, nas penosas circunstâncias de que fala o apóstolo (seja qual dor o grau do seu desenvolvimento), é edificarem-se nesta mui santa fé. O crente cultiva a comunhão com Deus e aproveita, por graça, das revelações do Seu amor. O Cristão tem uma esfera de pensamento própria onde se põe a coberto do mal que o rodeia e cresce no conhecimento de Deus, de quem nada o pode separar. A sua parte nEle é sempre tanto mais evidente, quanto mais o mal aumenta. A comunhão com Deus é no Espírito Santo, em cujo poder ele ora, e que constitui o elo entre Deus e a sua alma e, as suas orações são ofertas de harmonia com a infinidade desta relação, e animadas pela inteligência e pela energia do Espírito de Deus.
Deste modo, os Cristãos guardavam-se na consciência, na comunhão e no gozo do amor de Deus. Permaneciam no Seu amor, durante o tempo da sua permanência neste mundo; mas, como alvo, esperavam a misericórdia do Senhor Jesus Cristo, para a vida eterna (v.21). Com efeito, quando se repara nos frutos do coração do homem, sente-se a necessidade de que seja a Sua misericórdia a apresentar-nos sem mancha perante a Sua face, naquele dia, para a vida eterna com um Deus de santidade. Sem dúvida que é a Sua imutável fidelidade, mas, em presença de tanto mal, pensamos antes na Sua misericórdia. Veja-se o que Paulo diz, em circunstância semelhante, na sua segunda epístola a Timóteo 1:16. É a misericórdia que faz a diferença entre os que caem e os que ficam de pé (veja-se Êxodo 33: 19). E é preciso distinguir também entre aqueles que são enganados. Alguns há que são somente desencaminhados por outros. Mas outros há em que se vê claramente a ação das concupiscências de um coração corrupto, e, neste caso, devemos aborrecer tudo o que testemunha dessa corrupção, como coisa insuportável.
O Espírito de Deus, nesta epístola, não apresenta a eficácia da redenção. Ocupa-se das astúcias do Inimigo, dos seus esforços para aliar o desenvolvimento da vontade do homem com a profissão da graça de Deus, para deste modo provocar a corrupção da Assembléia e a queda dos Cristãos, pondo-os no caminho da apostasia e do Juízo. A confiança está em Deus e é a Ele que o escritor sagrado se dirige, ao terminar a sua epístola, quando pensa nos fiéis aos quais escreve. "Àquele que é poderoso para vos guardar de tropeçar, e apresentar-vos irrepreensíveis, com alegria, perante a sua glória".
É importante notar de que maneira o Espírito de Deus fala, nas Epístolas, de um poder que pode guardar-nos de toda a queda, e irrepreensíveis; de sorte que um pensamento de pecado, por simples que seja, não é jamais escusável. Não é somente a carne que não está em nós, mas o Espírito Santo atuando no novo homem; não é, pois, necessário que a carne atue ou influa na nossa vida (ver 1 Tessalonicenses 5:22). Estamos unidos a Jesus. Ele representa-nos perante Deus, Ele é a nossa Justiça. Mas, ao mesmo tempo, Aquele que, na Sua perfeição, é a nossa Justiça, é também a nossa vida, de sorte que o Espírito procura a manifestação dessa mesma perfeição, a perfeição prática, na vida de todos os dias. Aquele que diz: "Eu permaneço nEle", deve andar como Ele andou (1 João 2:6). O Senhor diz também: "Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus" (Mateus 5:48).
Há progresso nisto. Cristo ressuscitado é a fonte desta vida em nós, que remonta à sua origem, e que considera o Cristo ressuscitado e glorificado, a quem devemos ser conformes em glória, como seu objeto e seu alvo (ver Filipenses 3). Mas o efeito disso é que não temos outro alvo: "Uma coisa faço!" (Filipenses 3: 13). Assim, qualquer que seja grau de realização, o motivo é sempre perfeito. A carne não serve para nada, como motivo, e, neste sentido, somos irrepreensíveis.
Portanto, o Espírito - uma vez que Cristo, que é a nossa Justiça, é a nossa vida - liga a nossa vida ao resultado final de um estado irreprovável diante de Deus. A consciência sabe, pela graça, que a perfeição absoluta é nossa, porque Cristo é a nossa Justiça; mas a alma, que disso se regozija perante Deus, tem a consciência da sua união com Ele, e procura a realização dessa perfeição segundo o poder do Espírito pelo qual estamos assim unidos a Cristo.
Aquele que pode realizar essa perfeição, guardando-nos de toda a queda, esta epístola atribui toda a glória e todo o domínio, em todos os séculos.
O que há de mais particularmente impressionante na Epístola de Judas é que ele segue a corrupção da Assembléia desde a entrada imprevista de alguns até ao seu julgamento final, e mostra que essa corrupção não cessou, mas passa por fases variadas até esse dia.
FIM DO ESTUDO DAS EPÍSTOLAS