EPÍSTOLA AOS HEBREUS – CAPÍTULO 11

“ESTUDOS SOBRE A PALAVRA DE DEUS”
Tradução de Synopsis of the Books of the Bible- John Nelson Darby

EPÍSTOLA AOS HEBREUS – CAPÍTULO 11 

Não é uma definição desse princípio que a Epístola nos dá no início do capítulo 11, mas uma declaração da sua força e da sua ação. A fé realiza o que se espera; dá a essas coisas uma existência real, e é para a alma uma demonstração do que se não vê.

Há muito mais ordem do que geralmente se pensa na série de exemplos da ação da fé, que encontramos neste capítulo, embora esta ordem não seja o alvo principal. Assinalarei o que me parecer essencial.

Em primeiro lugar, pelo que concerne à Criação, o espírito humano, perdido em argumentações e ignorando a Deus, procurava, por meio de soluções sem fim, explicar a origem do que existe. Aqueles que têm lido as cosmogonias dos antigos sabem quantos sistemas diversos, qual deles o mais absurdo, têm sido imaginados para resolver aquilo que a introdução de Deus pela fé torna perfeitamente simples. A Ciência moderna, com um espírito menos ativo e mais prático, detém-se nas causas secundárias e não se ocupa de Deus. A Geologia substituiu a Cosmogogia dos Indianos, dos Egípcios, dos Orientais e dos filósofos. Para o crente, o pensamento é simples e claro; o seu espírito está certo do fato e instruído pela fé: Deus, pela Sua palavra, chamou tudo à existência. O Universo não é uma causa primeira produtora; existe pela vontade de Deus - e os seus movimentos são regulados por uma lei que lhe foi imposta. Aquele que tem autoridade para o fazer, fala, e a Sua palavra tem uma eficácia divina. Ele diz, e a coisa existe. Sente-se que isto é digno de Deus, porque uma vez que se introduza Deus tudo se torna simples. Mas se Deus for excluído, o homem fica perdido nos esforços da sua própria imaginação, que não pode criar nem chegar ao conhecimento de um Criador, porque não pode ultrapassar a capacidade de uma criatura. É por isso que, antes de entrar nos pormenores da forma atual de Criação, a Palavra de Deus diz simplesmente: "No princípio criou  Deus os céus e a Terra" (Gênesis 1:1). Tudo o que poderia ter acontecido entre o caos e a Criação não faz parte da Revelação. Isto é distinto da ação especial do dilúvio, a qual nos é dada a conhecer. O começo de Gênesis não nos dá a história dos pormenores da própria Criação nem a história do Universo; ensina­-nos o fato, que, no princípio, Deus criou, e em seguida narra o que diz a respeito ao homem sobre a Terra. Os próprios anjos não estão lá. Acerca das estrelas, não nos é dito senão isto: "E fez as estrelas". O "quando" não nos é revelado. Assim, nós cremos, pela fé, que os mundos foram criados pela palavra de Deus.

Mas o pecado entrou, e a Justiça tem de ser encontrada em alguma parte pelo homem caído, para que possa permanecer dian­te de Deus. Deus deu um Cordeiro para o sacrifício; porém, aqui é­-nos apresentado, não o dom da parte de Deus, mas sim a alma aproximando-se d'Ele pela fé.

Pela fé, pois, Abel ofereceu a Deus um sacrifício mais excelente do que Caim, um sacrifício que fundado na revelação já feita por Deus, era oferecido no conheci­mento que tinha a consciência ensinada por Deus do estado em que se encontrava aquele que o oferecia. A morte e o julgamento tinham entrado pelo pecado, e o homem não poderia suportá-los, embora tivesse de sofrê-los. É, pois, necessário que vá a Deus, confessando-O, mas que vá com um Substituto dado por graça; que se aproxime de Deus com sangue, testemunha ao mesmo tempo do Juízo e da perfeita graça de Deus. Abel, fazendo-o, estava na verdade - e esta verdade era a Justiça e a graça. Ele aproxima-se de Deus e coloca o sacrifício entre si e Deus. Recebe o testemunho de que ele era justo, justo segundo o julgamento de Deus, porque o sacrifício estava em relação com a Justiça que tinha condenado o homem, e tinha reconhecido também o perfeito valor daquilo que tinha sido feito no sacrifício. O testemunho é prestado à sua oferta, mas Abel é justo perante Deus. Nada de mais claro nem de mais precioso sobre este ponto! Não é somente o sacrifício que é aceito; é Abel que se aproxima com o sacrifício. Recebe de Deus o testemunho de que ele é justo. Que doce e preciosa consolação! Mas o testemunho é prestado aos seus dons, de modo que tem toda a certeza de ser aceito de harmonia com o valor do sacrifício que é oferecido. Indo a Deus pelo sacrifício de Jesus, não só sou justo (recebo o testemunho de ser justo), mas também o testemunho é prestado à minha oferenda. Por conseqüência a minha justiça tem o valor e a perfeição de oferenda, isto é, de Cristo oferecendo-Se a Deus. O fato de recebermos da parte de Deus o testemunho de sermos justos, e de, ao mesmo tempo, o testemunho ser prestado à dádiva que nós oferecemos (não ao estado em que nos encontramos) é de um valor infinito para nós. Estou agora perante Deus na perfeição da obra de Cristo. Deste modo ando com Deus.

Pela fé, tendo a morte sido o meio da minha aceitação perante Deus, tudo o que concerne ao velho homem é abolido. O poder e os direitos da morte são inteiramente destruídos: Cristo sofreu-os. Assim, se Deus o quiser, vamos para o Céu sem mesmo passarmos pela morte (comparar 2 Coríntios 5: 1-4). Foi o que Deus fez por Enoque, por Elias, como testemunho. Não só os pecados foram abolidos e a Justiça de Deus estabelecida por meio da obra de Cristo, mas também os direitos e o poder d'Aquele que tem o poder da morte foram inteiramente destruídos. A morte pode vir; sofrê-la é o nosso estado segundo a natureza, mas temos uma vida que está fora da sua alçada. A morte, se vier, não é senão um ganho. E embora seja só o poder de Deus que pode ressuscitar ou transformar, este poder foi manifestado em Jesus, e tem já atuado em nós, vivificando­-nos (comparar Efésios 1: 19). Atua em nós no poder da libertação do pecado, da lei e da carne. Como poder do Inimigo, a morte é vencida; e é tomada um "ganho" pela fé, em vez de ser um julgamento sobre a natureza. A vida, o poder de Deus nesta vida, opera em santidade e em obediência neste mundo, e manifesta-se na ressurreição ou na transformação do corpo. É um testemunho de poder acerca de Cristo, em Romanos 1:4.

Mas resta ainda uma consideração bem doce a notar aqui: Enoque recebeu o testemu­nho de ter agradado a Deus, antes de ser arrebatado. Isto é muito importante e muito precioso; andando com Deus, temos o testemunho de I1Je agradarmos, a doçura da Sua comunhão, o testemunho do Seu Espírito. Gozamos das Suas comunicações conosco, na consciência da Sua presença, na consciência de que andamos segundo a Sua Palavra; sabemos que o nosso procedimento é aprovado por Ele, numa palavra, vivemos de uma vida que, passada com Ele e perante Ele pela fé, decorre à luz do Seu rosto, e nos gozos das comunicações da Sua graça e de um testemunho assegurado, vindo d'Ele, que nós Lhe somos agra­dáveis. Uma criança que passeia com um pai amoroso, conversando com ele (não lhe reprovando nada a sua consciência), não goza do conhecimento do favor de seu pai?

Como figura, Enoque representa aqui a posição dos santos que formam a Igreja. Foi assunto ao Céu em virtude de uma vitória completa sobre a morte. Pelo exercício da graça soberana, ele está fora do governo e das libertações vulgares de Deus; presta testemunho pelo Espírito ao julgamento do mundo, mas não passa por esse julgamento (Judas 14 e 15). Um comportamento como o de Enoque tem Deus por seu alvo. Realiza a existência de Deus - a grande tarefa da vida que, no mundo, se passa como se o homem fizesse tudo - e o fato de Ele Sé interessar pelo comportamento dos homens, tomando conhecimento dele para recompensar aqueles que O procuram.

Nóe encontra-se nas cenas do governo deste mundo. Ele não advertiu os outros dos julgamentos futuros como alguém que está de fora, embora fosse pregador de Justiça; as suas advertências são também para si mesmo, pois está nas mesmas circunstâncias daqueles a quem as suas advertências se dirigem. Ele personifica o papel do espírito de profecia. Noé teme e constrói uma arca para a conversão da sua casa, condenando deste modo o mundo. Enoque não tinha de construir uma arca para atravessar o dilúvio com segurança; não estava no meio dele! Excepcionalmente, Deus tomou­-o para Si. Noé, herdeiro da Justiça que é segundo a fé, é guardado para um mundo futuro.

Há um princípio geral que aceita o testemunho de Deus acerca do Julgamento que vai abater-se sobre os homens, e do meio dado por Deus para lhe escapar. É um princípio que governa todos os crentes. Mas há algo de mais concreto: Abel tem o testemunho de ser justo; Enoque anda com Deus, agrada a Deus, e é isento da sorte comum da Humanidade, proclamando, como do alto, essa sorte que espera os homens, e a vinda d'Aquele que há de executar o Julgamento. Enoque vai em frente até ao cumprimento dos desígnios de Deus; mas nem Abel nem Enoque, assim considerados, condenam o mundo como um mundo no meio do qual eles andam, atingidos eles próprios pelas advertências dirigidas aos que nele habitam.

Esta última posição é a de Noé. O profeta, embora libertado, está no meio do povo condenado; a Igreja está fora. A arca de Noé condenava o mundo; o testemunho de Deus bastava para a fé, e Noé, herda de um mundo destruído. Ele possui a herança de todos os crentes, a justiça pela fé, 60bre a qual o novo mundo é também fundado. É a posição do Remanescente dos Judeus nos últimos dias: Atravessam os Julgamentos de diante dos quais nós somos retirados, como não pertencendo ao mundo. Advertidos eles próprios dos caminhos do governo terrestre de Deus, serão testemunhas para o mundo dos Julgamentos que vão chegar; serão os herdeiros da Justiça que é pela fé, e dela serão as testemunhas num novo mundo, onde a Justiça será cumprida em Julgamento por Aquele que é vindo, e cujo trono sustentará o mundo, precisamente onde Noé fracassou. A expressão "herdeiros da justiça que é segundo a fé" significa, penso eu, que esta fé, que tinha governado alguns, estava resumida na pessoa de Noé, e todo mundo incrédulo condenado.

Testemunha desta fé antes do novo juízo, Noé atravessa-o, e, quando o mundo é renovado, ele é testemunha para todos da bênção de Deus que repousa sobre a fé, embora exteriormente tudo seja mudado. Assim, Enoque representa, em figura, os santos do tempo atual; Noé representa o Remanescente Judaico. (1)

Depois de ter estabelecido os grandes princípios fundamentais da fé em ação, o Espírito Santo apresenta em pormenor (v. 8) alguns exemplos da vida divina, sempre em relação com os conhecimentos judaicos, relação esta que o coração de um Hebreu não poderia deixar de reconhecer - e ao mesmo tempo em relação com o alvo da Epístola e as necessidades dos Cristãos entre os Hebreus.

Nos primeiros exemplos que nos foram apresentados, vimos uma fé que reconhecia um Deus criador, e em seguida os grandes princípios das relações dos homens com Deus, e isto até ao fim, sobre a Terra.

No que se segue (v.8 a 22) temos em primeiro lugar a paciência da fé quando ainda nada possui, mas se confia em Deus e espera, certa do cumprimento das promessas. Esta passagem pode subdividir-se assim: Primeiro a fé que toma o lugar de um estrangeiro na Terra, mantém-se porque deseja algo de melhor, e, através da fraqueza, encontra a força necessária para que as promessas se cumpram. E disto que tratam os versos 8 a 16. O efeito disto é que se entra na alegria de uma esperança celestial. Estrangeiros no país da promessa, e não gozando do efeito das promessas neste mundo, espera-se coisas mais excelentes ainda, coisas que Deus prepara em Cima para aqueles que ama. Preparou uma cidade para tais homens. Em uníssono com Deus nos Seus próprios pensamentos, nos Seus desejos, respondendo pela graça às coisas em que Ele encontra o Seu prazer, eles são o objeto do Seu interesse particular. Não tem vergonha de ser chamado o seu Deus.

1 - Numa palavra, todos aqueles que são poupados para o século vindouro. O seu estado é expresso no fim de Apocalipse 7, assim como os dos Judeus nos primeiros versículos do capítulo 14.

Abraão não só seguiu a Deus até ao país que Ele lhe indicou, mas também, sendo ali estrangeiro, e não possuindo o país da promessa, é elevado na esfera dos seus pensamentos pela poderosa graça de Deus; . e, gozando da comunhão de Deus e das comunicações da Sua graça, descansa n'Ele para o tempo presente, aceita a sua posição de estrangeiro na Terra, e espera, como sendo a porção da sua fé, a cidade celeste de que Deus é o Arquiteto e o Criador. Não é uma revelação manifestada do que era o assunto desta esperança, se assim me posso exprimir, como aquela pela qual Abraão tinha sido chamado por Deus; mas, andando muito perto de Deus para conhecer aquilo de que gozava ao pé d'Ele, sabendo que não tinha recebido o efeito da promessa, Abraão apreendia as melhores coisas, esperava-as, embora as não vislumbrasse senão de longe - e fica estrangeiro na terra da promessa, sem pensar no país de onde tinha saído.

É evidente a ampliação especial destes primeiros princípios de fé ao caso dos Hebreus cristãos. Tal é a vida normal da fé para todos.

O segundo caráter da fé que nos é apresentado aqui (v.17 a 22) é uma perfeita confiança no cumprimento das promessas, con­fiança que a fé mantém através de tudo o que poderia tender a destruí-Ia.

Em seguida encontramos a segunda grande divisão, a saber, que a fé faz o seu caminho a despeito de todas as dificuldades que se opõem ao seu progresso (v.23 a 27). Nos versos 28 a 31, a fé manifesta-se numa confiança que assenta em Deus acerca do emprego dos meios que Deus nos apresenta, meios de que a natureza não poderia servir-se. Enfim, há a energia, em geral, de que a fé é a fonte, os sofrimentos que caracterizam a marcha da fé.(2)

Este caráter geral, .cuja aplicação ao estado dos Hebreus é evidente, é o caráter de todos os exemplos citados, a saber, que aqueles que viveram pela fé não receberam o efeito da promessa. Além disso, esses famosos heróis da fé, fosse qual fosse a honra de que gozassem junto com os judeus, não tinham os privilégios de que gozavam os Cristãos. Deus, nos Seus desígnios, tinha em vista algo de melhor para nós.

Entremos agora nalguns pormenores. A fé de Abraão revela-se numa inteira confiança em Deus. Chamado a deixar os seus, rompendo assim os laços da natureza, Abraão obedece. Não sabe para onde vai; basta-lhe que Deus lhe mostre o lugar. Deus, tendo-o conduzido lá, não lhe dá nada. No entanto Abraão ali permanece contente, numa perfeita confiança em Deus. E ele ganhava com esta confiança: esperava uma cidade que tem fundamentos! Confessa abertamente que é estrangeiro e peregrino na Terra (Gênesis 23:4), aproximando-se assim espiritualmente de Deus. Embora não possua nada, as suas afeições estão comprometidas: deseja um país melhor e une-se a Deus mais imediata e mais inteiramente. Não se sente nenhum desejo de voltar ao seu país; ele procura uma pátria! Tal é o Cristão. Na oferenda de Isaque encontramos esta confiança absoluta em Deus que, sobre o pedido de Deus, renuncia às promessas do próprio Deus como se possuem segundo a carne. A fé está certa de que Deus as restituirá pelo exercício do Seu poder, vencendo a morte e todos os obstáculos.

Foi assim que o Cristo renunciou aos Seus direitos messiânicos e foi até à morte, remetendo-Se à vontade de Deus, confiando-Se a Ele - e tudo recebeu em ressurreição! Era assim que os Cristãos hebreus deviam fazer a respeito do Messias e das promessas feitas a Israel. Pela simples fé, o Jordão se secou; aliás, nós não poderíamos atravessá-lo, se o Senhor o não tivesse atravessado antes.

2 - De uma maneira geral, podemos dizer que os versos 8 a 22 apresentam a fé assentando com segurança sobre a promessa - a paciência da fé; e o resto do capitulo, a fé assentando em Deus quanto à atividade e quanto às dificuldades do caminho - a energia da fé.

Note-se aqui que se ganha sempre confiando em Deus e renunciando a tudo por Ele, e que se aprende a conhecer algo mais dos caminhos do Seu poder, porque renunciando, segundo a Sua vontade, a uma coisa que Ele já deu, devemos esperar no poder de Deus para que nos conceda uma outra coisa. Abraão renuncia à promessa segundo a carne; tem em vista a cidade que tem fundamento e sabe desejar uma porção celeste: Renuncia a Isaque, em quem estavam as promessas, e aprende a conhecer a ressurreição, porque Deus é infalivelmente fiel. As promessas estavam em Isaque. Deus devia, pois, restituí-lo a Abraão em ressurreição, uma vez que Abraão o oferecia em sacrifício.

Em Isaque, a fé distingue a porção do povo de Deus segundo a eleição, e a do homem tendo direito de primogenitura segundo a natureza. É o conhecimento dos caminhos de Deus em bênção e em Juízo.

Pela fé, Jacó, estrangeiro, fraco, já não tendo senão o pau com que tinha atravessado o Jor­dão, adora a Deus e anuncia a dupla porção do herdeiro de Israel, daquele que foi separado dos seus irmãos, tipo do Senhor, herdeiro de todas as coisas. Sobre isto assenta o princípio da adoração.

Pela fé, José, estrangeiro, que representa aqui Israel longe do seu país, conta com o cumpri­mento das promessas terrestres. (3)

3 - Note-se que, nestes casos, encontramos os direitos de Cristo em ressurreição, o julgamento da natureza, e a bênção da fé, segundo a graça, a herança de todas as coisas, celestes e terrestres, por Cristo, e o regresso futuro de Israel ao seu país.

Todos estes exemplos são a expressão da fé na fidelidade de Deus, no cumprimento dos Seus desígnios no porvir. No que se segue, encontramos a fé que ultra­passou todas as dificuldades que se apresentam no caminho do homem de Deus, caminho que Deus lhe traça na sua peregri­nação para o gozo das promessas.

A fé dos pais de Moisés não tem em conta a cruel ordem do rei egípcio. Escondem o filho, que Deus, respondendo à fé deles, soube guardar por meios extraordinários, pois não havia maneira de o conservar de outro modo. A fé não raciocina; atua sob o seu ponto de vista de deixa o resultado a Deus. Mas o meio que Deus empregou para a conservação de Moisés tinha colocado este, com pouca diferença, na posição mais elevada do reino. Ali, ele tinha adquirido tudo o que aquele século podia dar a um homem notável pela sua energia e pelo seu caráter; mas a fé faz da sua obra, inspirando afetos divinos que não procuram uma direção para a conduta nas circunstâncias em que nos encontramos colocados, mesmo quando essas circunstâncias devem a sua origem a intervenções extraordinárias da Providência.

A fé tem os seus objetos próprios, dados pelo próprio Deus, e governa o coração em vista desses objetos. Dá-nos um lugar e relações que dominam toda a vida, e não deixa nenhum lugar a outros motivos e a outras esferas de afeição, que repartiriam o coração; porque os motivos e os afetos que governam a fé são dados por Deus, e isto para formar e governar o coração.

Os versos 24 e 26 desenvolvem este ·ponto. É um princípio muito importante, porque se alega freqüentem ente a Providência de Deus como razão para não se andar pela fé. Nunca a intervenção da Providência foi tão notável como quando colocou Moisés na corte de Faraó. E esta intervenção produziu o seu resultado, mas não o teria produzido se Moisés não tivesse

deixado a posição em que a Providência o tinha colocado. Mas a fé, isto é, as afeições divinas, criadas no coração de Moisés, e não a Providência de Deus, como regra e como móbil, (4) produziu o resultado para o qual a Providência tinha guardado e preparado Moisés. A providência de Deus governa as circunstâncias, Deus seja bendito; a fé governa o comportamento e o coração.

4 - Móbil: causa, motor, motivação

A recompensa que Deus prometeu entra aqui em linha de conta como objeto, na esfera da fé. Não é o móbil mas sustém e encoraja o coração que atua pela fé, em vista do objeto que Deus apresenta aos Seus afetos. Deste modo ela subtrai o coração à influência do tempo presente e das coisas que nos rodeiam, quer sejam agradáveis quer inspirem o temor; eleva o coração e o caráter daquele que atua pela fé, e fortalece-o numa marcha de dedicação que o conduz ao objetivo a que ele aspira.

Ter um motivo fora daquilo que está presente diante de nós é o segredo da firmeza e da ver­dadeira grandeza. Podemos ter um objeto a respeito do qual atua­mos; mas necessitamos de um motivo fora dele, um motivo divi­no, para nos tomar capazes de atuarmos segundo Deus a respeito desse mesmo objeto (v.27).

A fé realiza também (v.27) a intervenção de Deus sem O ver, livrando assim de todo o temor do poder do homem, inimigo do Seu povo.

Mas o pensamento de que Deus intervém coloca o coração numa dificuldade ainda maior do que faria o temor do homem. Para que os Seus sejam libertados é preciso que Deus opere essa libertação, e isto em Juízo. Mas eles, tal como os seus inimigos, são pecadores; ora, a consciência do pecado e do julgamento que nós merecemos destrói necessariamente a confiança n'Aquele que julga. Não tememos nós de O ver vir para manifestar o Seu poder em julgamento? Porque, no fundo, é o que deve suceder para a libertação do povo de Deus. O nosso coração interroga-se: Deus, esse Deus que vem em Juízo, é para nós? Mas Deus preparou o meio de tomar certa a nossa segurança em presença do Juízo (v.28), meio aparentemente fraco e inútil, mas que, de fato, é o único que, glorificando a Deus acerca do mal de que nós somos culpados, pode colocar-nos inteiramente ao abrigo do Julgamento.

A fé reconhece o testemunho de Deus, confiando-se à eficácia do sangue posto sobre a porta, e pode, com toda a segurança, dei­xar vir Deus em julgamento, porque, vendo o sangue, Ele passa por cima do Seu povo crente. Pela fé, Moisés fez a Páscoa. Note-se aqui que o povo, colocando o sangue sobre a porta, reconhece que era, tanto como o Egípcio, o objeto de um justo julgamento de Deus. Deus deu-­lhe o que o protegia, mas isso porque ele é culpado e merece julgamento. Ninguém pode manter-se e permanecer na Sua presença.

Verso 29. Ora, o poder de Deus é manifestado, e manifestado em julgamento. A natureza, os inimigos do povo de Deus pretendem atravessar esse julgamento" a seco" com aqueles que estavam no abrigo da justa vingança de Deus; o julgamento os tragou, justamente no lugar onde o povo encontrou sua libertação :- princípio de um alcance maravilhoso: onde está o julgamento de Deus, está também a libertação! É o que, realmente, nos acontece em Cristo. A cruz é a morte e o julgamento, as duas terríveis conseqüências do pecado, a sorte do homem pecador. Mas, para nós, a morte e o julgamento são a libertação de Deus! Pela Cruz, nós somos libertados e (em Cristo) passamos adiante e fora do seu alcance. Cristo é morto e ressuscitado, e nós entramos pela fé, em virtude do que teria sido a nossa ruína eterna, onde a morte e o julgamento são postos de lado e onde os nossos inimigos já não nos atingirão. Passamos através deles sem sermos atingidos. A morte e o julgamento protegem­-nos do inimigo; são a nossa segurança. Mas nós entramos numa nova esfera: gozamos do efeito, não só da morte de Cristo, mas também da Sua ressurreição.

Aqueles que, de acordo com a força da natureza, querem passar por esse mar, e falam da morte e do julgamento, e de Cristo, que tomam a posição cristã, que pensam em poder passar pela morte e pelo julgamento sem que o poder de Deus em redenção ali se encontre, estão já submersos...

Em relação com os Judeus, este acontecimento terá um antítipo terrestre, porque, com efeito, o dia do Juízo de Deus sobre a Terra será o dia da libertação do Israel, que terá sido levado ao arrependimento.

Esta libertação no Mar Vermelho vai mais longe do que a proteção pelo sangue no Egito.

Pela Páscoa, onde Deus, na expressão da Sua santidade, executava o julgamento contra o mal, era preciso que se fosse posto ao abrigo desse julgamento, que se fosse protegido do justo Juízo do próprio Deus. Deus, vindo para o executar, ficava de fora por causa do sangue; o povo estava em segurança diante do Juiz. Esse julgamento tinha o caráter do Juízo eterno, e Deus tinha o caráter de Juiz.

No Mar Vermelho não havia apenas libertação do julgamento suspenso sobre o povo;(5) Deus estava ativo em amor e em poder para o povo. A libertação era uma libertação atual; o povo saía de um estado em que se encontrava escravizado, para entrar num outro diferente. Ali estava o poder do próprio Deus fazendo atravessar o Seu povo sem que este fosse atingido, o que, de outro modo, teria sido a sua destruição. Assim, para nós, o Mar Vermelho representa a morte e a ressurreição de Cristo, nas quais nós temos parte; a redenção que Cristo realizou, (6) introduzindo-­nos num estado totalmente novo, inteiramente fora da natureza. Já não estamos na carne.

5 - Esta quietos - diz Moisés - e vede o livramento do Senhor(Êxodo 14: 13).
6 - A passagem do Jordão representa a libertação do crente e a sua entrada inteligente nos lugares celestiais pela fé. É a consciência de que estamos mortos e ressuscitados com Cristo. O Mar Vermelho fala-nos do poder e da redenção cumprida por Cristo.

Em princípio, a libertação terrestre do povo Judeu (do Remanescente Judeu) será a mesma. Fundada sobre o poder de Cristo ressuscitado e sobre a procriação realizada na Sua morte, esta libertação será feita por Deus que intervirá a favor dos que se voltarem para Ele pela fé. Ao mesmo tempo os Seus adversários, que são também os do Seu povo, serão destruídos pelo mesmo julgamento que preservará aqueles que eles tiverem oprimido.

Verso 30. Mas, se as dificuldades não estavam todas superadas, a redenção estava cumprida, a libertação efetuada, e o Deus de libertação estava com o povo. Perante Ele, as dificuldades desapareciam. O que constitui dificuldades para o homem, não é nada para Deus. A fé confia-se em Deus; emprega meios que bem exprimem esta confiança. Os muros de Jericó caem perante o som das trombetas, quando Israel os rodeou durante sete dias, fazendo soar sete vezes essas trombetas!

Raabe, em presença de todo o poder ainda intacto dos inimigos de Deus e do Seu povo, identifica­-se com este último ainda antes de ele ter alcançado a primeira vitória, porque tem a consciência de que Deus está com ele. Embora estrangeira para esse povo, quanto à carne, escapa pela fé ao julgamento que Deus executa sobre a sua nação.

Verso 32. Aqui o apóstolo cessa de seguir os pormenores. Israel, estabelecido no país da promessa, fornecia menos ocasiões de desenvolver, por meio de exemplos, os princípios sobre os quais a fé atuava, embora os indivíduos devessem ainda agir pela fé. O Espírito Santo recorda, de um modo geral, alguns desses exemplos em que a fé se reproduz sob diversos caracteres de energia e de paciência e sustém as almas em todas as espécies de sofrimentos. A glória dele é ao pé de Deus. O mundo não é digno deles. Eles não tinham recebido o efeito das promessas; deviam viver de fé, tal como os Hebreus a quem o apóstolo se dirige. Todavia, estes últimos tinham privilégios que os antigos fiéis de modo nenhum possuíam. Nem eles nem os Cristãos foram levados à perfeição, quer dizer, à glória celeste, à qual Deus nos chamou e na qual eles devem ter parte. Abraão e outros esperaram esta glória, e nunca a possuíram. Deus não quis dar-lha sem nós. Mas Ele não nos chamou só pelas revelações que lhes fez; tinha reservado algo de melhor para os tempos do Messias rejeitado. As coisas celestiais tomam-se coisas do tempo presente, coisas plenamente reveladas e já possuídas em espírito pela união dos santos com Cristo, e pela entrada atual no lugar santíssimo em virtude do Seu sangue.

Não se trata agora de uma promessa, nem de uma vista distinta de um lugar visto do exterior e cuja entrada não é ainda permitida, nem de relações com Deus que não sejam fundadas sobre a entrada adentro do véu, sobre a entrada da Sua própria presença. Agora nós entramos com plena liberdade; perten­cemos ao Céu; é ali que se encontra a nossa cidadania; ali, estamos em nossa casa. A glória celeste é a nossa porção presente, tendo Cristo ali entrado como nosso Precursor. Temos no Céu um Cris­to, Homem glorificado. Abraão não O tinha; marchava sobre a Terra num espírito celeste, espe­rando uma cidade, sentindo que nada mais podia satisfazer os dese­jos que Deus tinha posto no seu coração. Mas não podia estar em relação com o Céu por meio de um Cristo, assentado de fato lá em Cima, em glória. Ora, esta é a nossa posição atual. Podemos mesmo dizer: Estamos unidos a Cristo lá. A posição do Cristão é diferente da de Abraão. Deus ti­nha em vista algo de melhor para nós.

O Espírito Santo não desenvolve aqui toda a extensão deste "algo de melhor" porque a Igreja não é o Seu tema. Apresenta, em geral, aos Hebreus, para os encorajar, esta verdade: Os crentes do tempo presente têm privilégios especiais, nos quais eles têm parte da fé, privilégios que nem mesmo pertencem à fé dos antigos fiéis.

Nós seremos perfeitos, quer dizer, glorificados juntamente em ressurreição; mas há uma parte especial que pertence aos santos atuais e que não pertencia aos patriarcas. O fato de o Cristo Homem estar no Céu, após ter cumprido a redenção, e de o Es­pírito Santo, pelo qual nós estamos unidos a Ele, estar na Terra, toma esta superioridade concedida aos Cristãos facilmente compreen­sível; aliás, mesmo o menor no reino dos céus é maior daqueles que precederam esse reino.

 

Adorar - As seis miradas de Jesus