Barzilai, o Gileadita; Saul e Jonatas.

“AOS PAIS DE MEUS NETOS”

Cartas de um avô aos pais de seus netos- G. C. Willis

ANÁLISE DE FAMÍLIAS DA BÍBLIA

 

Barzilai, o Gileadita

"E era Barzilai mui velho, da idade de oitenta anos; ele sustentara o rei, quando este estava em Maanaim, porque era homem mui rico." (Veja II Sm 19:32). O rei convidou a Barzilai a ir com ele a Jerusalém, assegurando-lhe: “... vem tu comigo e te sustentarei em Jerusalém". Porém Barzilai considerou-se velho demais para aceitar esse convite, e, afora isso, ele não tinha sustentado o rei esperando recompensa. O que o levara a servir ao rei naqueles dias de aperto e de dificuldades em que Davi se encontrava fora o amor e a hospitalidade. O amor não espera retribuição. Barzilai acrescentou uma palavra que todos nós, creio eu, havemos de dizer naquele dia ao nosso Senhor: " ... por que há de me retribuir o rei com tal recompensa?" (Veja II Sm 19:36). Barzilai disse ao rei que preferia voltar à sua cidade, mas que seu filho Quimã fosse com o rei, e que fizesse a este o que bem lhe parecesse. A isso o rei respondeu: "Quimã passará comigo, e eu lhe farei como for do teu agrado, e tudo quanto desejares de mim eu te farei." (Veja v.38).

O que será que Davi passou a fazer então pelo filho do seu amigo, que o sustentara durante o seu desterro? Não sabemos se dividiu com ele sua herança em Belém. O que sabemos é que Davi nunca esqueceu as beneficências de Barzilai, que compartilhou do seu desprezo, pois no leito da morte recomendou aos cuidados de Salomão, não somente a Quimã, mas "os filhos de Barzilai, o gileadita". O que sabemos também é que o nosso Senhor dividirá a Sua casa gloriosa com todos aqueles que compartilharem com Ele da Sua rejeição.

É um privilégio abençoado podermos participar, com o Senhor Jesus, da Sua rejeição, assim como é abençoado também poderem nossos filhos participar conosco dessa mesma rejeição. Eles e nós havemos de dividir a glória com Aquele que temos aprendido a amar na Sua rejeição. Há quem diga: Deixe que os filhos por si mesmos se decidam. Não foi esse o parecer, nem o procedimento, daqueles nobres no Velho Testamento. Era bem lógico e normal que os filhos acompanhassem os pais aonde quer que estes fossem. Deus queira que seja assim também com os nossos filhos.

Mais umas poucas palavras sobre Quimã, embora não se liguem diretamente ao nosso assunto. O nome "Quimã" significa "desejoso". É derivado da palavra hebraica cujo sentido é "desejar ardentemente" algo. É uma palavra que aparece somente uma única vez na Bíblia, a saber, no Salmo 63:1:          “a minha carne te deseja muito” ou, tem outra tradução: “... meu corpo te almeja...". Por meio disso somos lembrados do desejo que talvez tenha habitado no coração de Barzilai, de usufruir das bênçãos prometidas a Israel, embora fossem ainda futuras. Talvez seria melhor dizer, não das bênçãos, mas daquele que abençoa, visto que no Salmo citado não lemos: “...o meu corpo almeja as bênçãos", mas: "...te almeja". Pode-se entender que mesmo que Barzilai não tenha acompanhado pessoalmente a Davi para Jerusalém, o seu desejo, contudo, o tenha acompanhado.

Minha intenção foi de encerrar por aqui a história de Barzilai. Embora tivesse ainda algumas anotações a respeito dele, a saber em Ed 2:61-67. Foi pesado para mim ver manchado o nome deste nobre Barzilai, mesmo que com uma só mácula, pelo que já estive decidido a esquecer aquelas notas desfavoráveis, porém o Espírito de Deus é tão correto e tão preciso nos seus relatos, que não encobrira nenhuma falha de alguém, embora outras vezes o faça, quando então o faz tão perfeitamente que poucos as encontram.

Assim sendo, sou obrigado a ventilar aqueles meus "quase segredos", pois não posso omiti-los. Juntos queremos, portanto, procurar a causa daquela mancha negra na vida de Barzilai.

Isso veio a ser descoberto somente cerca de quinhentos anos depois de o povo voltar do cativeiro babilônico. Naquele tempo os filhos de Habaias, filhos de Cóz, filhos de Barzilai procu­raram descobrir o seu "registro nos livros genealógicos, porém não o acharam, pelo que foram tidos por imundos para o sacerdó­cio. O governador Ihes disse que não comessem das cousas sa­gradas, até que se levantasse um sacerdote com Urim e Tumim".

Qual foi, pois, o motivo da reprovação? Por que estes homens não puderam encontrar sua genealogia? Há muitos anos um de seus antepassados casou­-se com uma filha de Barzilai, o gileadita. Sem dúvida isso fora' vantajoso para o tal sacerdote, que dessa forma conquistara honra e riqueza, pois que, conforme temos visto acima, Barzilai era muito rico e nobre. Tal era sua riqueza, que com sua fortuna pessoal conseguiu sustentar a Davi com seus homens de guerra, durante longo tempo.

Não é muito fácil tornar-se genro de um homem tão rico e nobre. Em contradição com as recomendações de Deus na Sua Palavra, o pretendente, este jovem sacerdote, tinha renunciado ao seu próprio sobrenome, adotando o da sua parceira. Dado isso encontramo-lo sob o nome "Barzilai". O seu próprio nome desaparecera em detrimento de bens terrenos, honra e riquezas. Não resta dúvida de que esse genro de Barzilai alcançou tudo o que procurava. Talvez até pensasse ter pago pouco por tudo aquilo que adquiriu, esquecendo, porém, que esta sua ganância viesse a custar caro aos seus descendentes, e isso quinhentos anos mais tarde, onde perderiam a abençoada posição de sacerdotes! Para o crente não é possível auferir vantagens de ordem mundana sem que tome o correspondente prejuízo nas coisas concernentes ao céu, ou coisas de ordem espiritual. Analisando bem, veremos que as riquezas e honras celestiais são mais constantes e duradouras do que os tesouros deste mundo, por mais atraentes que estes sejam (Veja Ed 2:61).

Não é nossa incumbência verificar quem foi o culpado no que se refere àquele casamento. Contudo é triste encontrarmos o nome de Barzilai, o gileadita, envolvido num caso tão vergonhoso, como o vemos em Esdras.

A lição que este fato tem a nos ensinar é bastante clara, contudo gostaria de indicar para o desfecho daquele trecho em Esdras, visto que aí se evidencia urna mensagem de esperança, quanto a nós: Em nosso favor levantou-se um sacerdote com Urim e com Tumim - que conhece os corações. Ele sabe, também, tudo a respeito da nossa genealogia, isto é, se somos ou não renascidos, embora anos de indiferença ou até mesmo de comunhão com o mundo tivessem tornado duvidosa, aos olhos de outros, a nossa conversão.

 

Saul

Na verdade já deveríamos ter focalizado a biografia de Saul e de seu filho Jônatas antes, porém, queremos contemplá-la agora em conexão com Mefibosete.

A história da família de Saul é tão triste, que com prazer a omitiria. Saul parece ter sido um homem sem fé, e sem fé é impossível agradar a Deus. Não gostaria que nos ocupássemos muito com a vida deste infeliz, que tivera um começo esplêndido, seu fim, no entanto, tão trágico.

Sobre sua família pouco nos é transmitido; com exceção de Jônatas e Mical, que casou-se com Davi. Jônatas, seus dois irmãos - Abinadabe e Malquisua - e Saul, seu pai, foram mortos na batalha, na montanha de Gilboa. Is-Bosete, outro filho de Saul, subiu ao trono de seu pai, após a morte deste, e governou cerca de sete anos. Foi um período de constante guerra contra Davi, o rei escolhido por Deus. Finalmente Is-Bosete foi morto por dois de seus servos, quando dormia. Ainda assim Davi, referindo--se a Is-Bosete, falava de "um homem justo". Outros dois filhos de Saul foram enforcados perante a face do Senhor - Armoni e Mefibosete* ­porque Saul, em sua maldade, quebrou o juramento feito aos gibeonitas (veja II Sm 21: 1-9). Merabe, filha de Saul ora prometida a Davi, porém que acabou sendo dada por mulher a Adriel, o meolatita, teve com este cinco filhos, que foram todos enforcados juntamente com seus dois tios, Armoni e Mefibosete. Outra filha de Saul, Mical, a qual tinha sido dada por mulher a Davi, não teve filhos até ao dia da sua morte, isso porque desprezou a Davi, quando ele acompanhava a arca do Senhor, que era introduzida novamente em Jerusalém (veja II Sm 6:23).

É difícil imaginar uma família que tivesse tido um fim mais trágico do que a de Saul. Acredito que Ele mesmo, como pai, foi o responsável por toda essa tragédia. Saul rejeitou a palavra do Senhor, por isto o Senhor o rejeitou a ele (veja I Sm 15:26). Que ensinamento severo para todos os pais! A Palavra de Deus requer de nós obediência, e qualquer desatenção a ela implica, de forma direta, em castigo por parte de Deus. Saul encheu-se de ciúme contra Davi, o escolhido de Deus, e odiava-o com grande ódio. Na véspera da sua morte Saul reconhece que: "Deus se tem desviado de mim", e foi a uma pitonisa (que é uma vidente), ou seja, ao próprio diabo, buscando socorro.

 

Jonatas

A história da família de Saul é chocante, contudo, mesmo ai vemos a operação da graça de Deus. Jônatas, cujo nome quer dizer "dado por Deus", e que é filho de Saul, é um dos mais amáveis caráteres que a Bíblia menciona.

Sua afeição por Davi quase tornou-se em provérbios. Quando Davi havia matado a Golias, "a alma de Jônatas se ligou com a de Davi. E Jônatas o amou, como à sua própria alma... Despojou-se Jônatas da capa que vestia e a deu a Davi, como também a armadura, inclusive a espada, o arco, e o cinto" (veja I Sm 18:1­4). Seu coração sempre pertenceu ao seu amigo.

Apesar do grande ódio de seu pai contra Davi, Jônatas continuou sendo o amigo de Davi. Isso vemos confirmado quando presenciamos a despedida dos dois, quando Davi teve de fugir a bem da sua vida: " ... e beijaram-­se um ao outro, e choraram juntos, Davi, porém, muito mais. Disse Jônatas a Davi: Vai-te em paz, porquanto juramos ambos em nome do Senhor, dizendo: O Senhor seja para sempre entre mim e ti, e entre a minha descendência e a tua." Enquanto, contudo, a Davi esperavam ignomínia e rejeição, Jônatas voltou para sua casa. Quão mais feliz teria ele sido, se tivesse compartilhado ela afronta com Davi!

O coração de Jônatas sempre pertenceu a Davi, o que vemos confirmado quando de sua visita a Davi, quando este se encontrava nos seu esconderijo, e quando Jônatas lhe "fortaleceu a confiança em Deus" (veja I Sm 23:16). Contudo mais uma vez a despedida é descrita com as mesmas palavras: “... E Jônatas voltou para sua casa", enquanto Davi permanecera no deserto. Não nos lembra isso o nosso Senhor e mestre?: "E cada um foi para sua casa. Jesus, entretanto, foi para o monte das Oliveiras" (veja Jo 7:53; 8:1).

Teria Jônatas sido atraído pela sua família? Ou teria sido a fidelidade para com o seu pai, que o impedia de ficar com Davi? Por que não dividiu com Davi a afronta, uma vez que verdadeiramente o amava e até mesmo o reconheça como o ungido rei? Não se sabem os motivos que o levaram a tanto, porém uma coisa é certa: Jônatas não participou efetivamente da rejeição do seu amigo. Eu espero que não tenha sido devido ao fracasso de seu amor! Pedro certa vez abandonou ao seu Senhor, mas não acredito que tenha sido por falta de amor.

Lembro-me de épocas na minha vida, em que recusei-me a participar do opróbrio de meu Senhor. Tenho recordação de momentos em que não O dei a conhecer ante as gentes deste mundo. Mais de uma vez tive de fazer minhas as palavras de Pedro, quando disse: "Senhor, tu sabes todas as cousas; sabes que eu te amo" , embora o meu procedimento houvesse provado o contrário. Naquela mesma noite em que Pedro negou ao seu Senhor, não houve sequer um único que estivesse disposto a partilhar da rejeição e da condenação do Senhor. Lemos:

"Então os discípulos todos, deixando-o, fugiram". Quando Paulo, o servo do Senhor, encontrava-se perante Nero ele provou aquele mesmo abandono, pois escreve: "Na minha primeira defesa ninguém foi a meu favor; antes, todos me abandonaram”.

(veja II Tm 4: 16). Também em nossos dias o nosso Senhor está tão rejeitado como o foi naquela ocasião. Meus amados, nem sempre é fácil seguir àquele Senhor reprovado pelo mundo. Não é tão fácil, tanto que hoje há poucos que poderiam condenar a Jônatas, sem condenarem-se a si mesmos com ele.

Ao lermos a história de Jônatas, nos sobrevém uma triste sensação. Em vez de chegar a ser "o segundo no reino", o que logicamente teria sido o caso se tivesse compartilhado com Davi em sua rejeição, Jônatas, o amável e ao mesmo tempo guerreiro valente, morre na montanha de Gilboa. Seu filhinho, Mefibosete, sofre uma queda, quando aos cuidados de sua ama, que quis salvá-lo, ficando aleijado para o resto da vida. Foi criado em Lo­-Debar - "sem pastagem" - o mais distante possível da presen­ça do novo rei. 8e teve que passar pela rejeição, pelo desterro, que seu pai Jonatas não quisera provar.

A história de Mefibosete é comovente! Contudo, Davi manifesta-lhe bondade por respeito a seu pai Jônatas, que fora seu inesquecível amigo. Ele acolheu a este pobre aleijado e órfão introduzindo-o em um relacionamento de intimidade, trazendo-o à mesa do rei, e sendo tratado como se fosse um dos filhos da casa rei.

Ziba, servo do avô de Mefibosete, auxiliado por seus quinze filhos e vinte servos, cuidava das terras de Mefibosete, visto que Davi tinha-lhe dado tudo o que pertencera a Saul e à sua família como herança.

Queremos acompanhar até ao fim essa história que, na verdade, é triste, mas que termina bem:

Quando o rei Davi voltou do desterro perguntou logo a Mefibosete: "Por que não foste comigo, Mefibosete?" É certo que não tinha ido com o rei, mas esta pergunta do rei deve-se a uma calúnia por parte de Ziba contra Mefibosete; o que veio abalar aquele relacionamento amistoso e de confiança havido desde há muito, entre Davi e Mefibosete. O pobre aleijado ficara em sua casa lamentando não ter podido acompanhar o rei na sua fuga, porque Ziba, seu criado, não lhe albardara o jumento. Mefibosete em todo o tempo da ausência do rei não tratou dos pés, não se barbeou, nem lavou suas vestes. Muitas vezes tenho meditado sobre a resposta, tão injusta, que o rei deu a Mefibosete: "Resolvo que repartas com Ziba as terras"; isso embora Mefibosete tenha-lhe afirmado que a sua fidelidade e dedicação para com o rei não tinham mudado. Hoje sei que essa resposta foi necessária para que ficasse registrada a reação de Mefibosete, a qual evidencia muito apreço ao rei: "Fique ele muito embora com tudo, pois já voltou o rei meu senhor em paz à sua casa". Bens materiais - imóveis ­não tinham para Mefibosete nenhum valor que se comparasse com a pessoa do rei, que ele tanto amava.

Há poucos relatos na Bíblia que sejam mais tristes do que essas duas histórias, a de Saul e a de Jônatas. Mas, apesar de tudo, vemos ainda assim, por um lado, a graça e a bondade de Deus como talvez em nenhuma outra; e, por outro lado, a rara devoção e o amor que enchiam o coração de Mefibosete. Que Deus nos dê corações como esse!

Mefibosete havia reconhecido qual era a fonte de onde emanavam todas as suas bênçãos, pois deu ao seu filhinho o nome "Mica", que quer dizer: "Quem é como o Senhor"?

Que sublime desfecho de uma biografia!

 

 

"Estudos sobre a palavra de Deus” - Hebreus 3